por Da Redação
A vocação pública do jornalismo é inquestionável. O que é muitíssimo questionável é se ele está seguindo sua vocação. Afinal, vocação é apenas um chamamento, a que se pode atender ou não. O Aurélio dá como sinônimo predestinação, mas não creio que muitos de nós aqui aceitemos destinos traçados. E o que se vê nos meios de comunicação – ou na mídia, esta palavra odiosa, que revela toda a nossa vocação, esta sim atendida, de colonizados culturais – não me dá muito a idéia de que a noção de público seja dominante ou sequer forte na prática do jornalismo hoje. E não estou me referindo, agora, apenas ao jornalismo produzido no Brasil, embora vá me ater à situação brasileira no decorrer desta nossa conversa que, afinal, é sobre ensino. Fala-se muito no tardio aparecimento da imprensa no Brasil. E, realmente, é uma das marcas de nossa formação ágrafa o fato de nossos primeiros produtos impressos, isto é, de reprodução mecânica da escrita, para leitura de muitos, só terem existido em 1808, quando eles haviam se espalhado pela Europa no século XVII e já existiam nas Américas inglesa e espanhola no início do século XVIII. Mas há uma vantagem nisso. Ao invés de nascer para servir à emergente sociedade mercantil, os veículos de comunicação impressos surgiram em nosso país para servir à liberdade, à construção da nação, com Hipólito, Frei Caneca e Cipriano. À mesma época, surgiram também aqui, como é do conhecimento de todos, os jornais ligados ao poder, a imprensa áulica. E por falar em imprensa áulica, cortesã, puxa-saco, não é instigante, para nossas reflexões estes dias, em Natal, que a palavra aula venha da mesma raiz? Aula, em português antigo, era também corte, palácio. Em meus cursos, na UFRJ e na PUC, muitíssimas vezes referi-me ao DNA de nosso jornalismo, que nasceu clandestino, exilado, com o Correio Braziliense, de Hipólito, ao mesmo tempo que oficial, com a Gazeta do Rio de Janeiro. E assim tem vivido nesses quase 200 anos, oscilando entre o aplauso à corte e a condição de marginal, alternativo, clandestino. Quando ponho em dúvida que o jornalismo venha seguindo sua vocação pública, refiro-me aos produtos das grandes empresas de comunicação que, como é próprio de empresa, visam o lucro e não a formação de um público cidadão. Mas, não pretendo cair naquele gênero de crítica ao jornalismo tão caro a grande parte da academia e que Nilson Lage, em provocativa preleção que fez na abertura do IV Fórum, em Campo Grande, considerou produto de uma “bolha ideológica”. A vocação é forte e o próprio negócio vai mal, se não atender em parte ao chamamento da utilidade pública. Foi o que aconteceu quando a ditadura militar perdeu força e os grandes jornais, preocupados com a fuga dos leitores – quem quer ler jornal censurado? – começaram a ficar outra vez interessados na democracia. Por mais que as empresas estejam de olho nas vantagens financeiras e nas suas ligações com o poder, a própria natureza do jornalismo faz com que os profissionais, mesmo chefes e até patrões, portem-se em muitas ocasiões como combatentes. E combatentes, aqui, não é apenas metáfora para quem procura a verdade, a informação correta, em um mundo de competição desvairada, que gera o tempo todo boatos, verdades maquiadas e mentiras, além de violência. Basta ver o númerode profissionais mortos nessa estúpida – em todos os sentidos – guerra contra o Iraque. Mesmo em tempos ditos de paz o risco do jornalista é permanente. A Organização dos Repórteres Sem Fronteiras fez um balanço sombrio do ano de 2002, durante o qual foram assassinados 25 jornalistas no exercicio da profissão; e ainda há outros 30 casos sendo investigados sob suspeita de assassinato.Dentre os nove que foram mortos na América Latina está o repórter Tim Lopes, da Rede Globo. Além disso, no ano passado, foram presos mais de 700 jornalistas, sendo que em janeiro deste ano 118 permaneciam na cadeia, pelo “crime” de realizar trabalho de investigação. A imprensa também sofreu, principalmente no ano passado, o que chamamos de “censura judicial”. Esta alarmou os empresários, principalmente pelo que foi qualificado como “indústria das indenizações”. A Associação Nacional dos Jornais – ANJ manifestou sua preocupação, por exemplo, com a censura prévia imposta pela Juiza da 4ª Vara Cível de São Paulo, ao conceder medida liminar impedindo veiculação de notícia sobre o processo que tramita no TRT da 2ª Região, envolvendo o Juiz Renato M. Khamis. A Folha de Niterói foi condenada pelo Juiz da 9ª Vara Cível a indenizar com 250 vencimentos de secretário de Estado, o secretário de Justiça do Rio, Sergio Zveiter. O colunista Leonardo Aguiar, deste jornal, foi condenado a indenizar o então secretário com 60 sálarios. As duas penas somadas dão um total de mais de um milhão e 500 mil reais. Crime da Folha de Niteroi e de seu colunistas: noticiou a viagem de autoridades, inclusive magistrados, por conta dos cofres públicos, para assistirem a jogos da Copa do Mundo na França. Um oficial de justiça e seis agentes da Policia Federal invadiram a redação do jornal A Noticia, de Maceió-AL, por mandado do Juiz do Tribunal Regional Eleitoral, que ordenou a busca e apreensão de equipamentos eletrônicos, computadores, disquetes e fitas. O semanário havia publicado matéria sobre processo contra o prefeito de Junqueiro, João José Pereira. Durante três horas, oa policiais reviraram gavetas e armários, espalhando papéis e documentos, e, não encontrando o diretor, retiraram-se, levando os equipamentos. A prisão do jornalista ocorreu dias depois, no apartamento em que residia com a família. No primeiro recurso interposto ao Superior Tribunal de Justiça teve a liberdade negada. Muitos outros exemplos, alguns bem notórios, poderiam ser dados. Escolhi estes por terem sido menos divulgados. Mas o que é novo, ou melhor, o que reacende velha polêmica, é a decisão da Juíza de São Paulo que condenou a Rádio Eldorado a pagar indenização ao prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro. A sentença baseou-se, não na Lei de Imprensa, mas no conceito segundo o qual o surgimento de grandes conglomerados de informação tornou obsoleto o conceito de liberdade individual de expressão vigente, o que estaria sendo confundido com liberdade de empresa. O jurista Fábio Konder Comparato é citado como apoio, no texto da sentença da Juíza. O Tribunal Superior Eleitoral, também no ano passado, aprovou resolução proibindo jornalistas de emitirem opinião sobre candidatos às eleições em programas de rádio e televisão. No Conselho de Comunicação Social, os jornalistas Alberto Dines e Carlos Chagas repudiaram o ato afirmado que a imprensa não pode estar à mercê de decisões judiciais. Nem o Legislativo é inocente nesse velho costume de culpar a imprensa. Vez por outra volta a ameaçá-la, e sua finalidade pública, ao pôr na ordem do dia a Lei da Mordaça, que impediria membros do Judiciário, do Ministério Público e das Polícias de fazer comentários públicos e divulgar informações sobre os processos e investigações em curso. Tudo isso prova que a imprensa incomoda setores do poder e que, portanto, não deixou totalmente de cumprir sua vocação pública. E aí está o primeiro desafio – porque são muitos – do ensino de jornalismo. Qual o papel dos cursos nesta guerra pela liberdade de bem informar? Reparem que eu estou complicando nossa tarefa. Não se trata apenas de formar jornalistas competentes, mas cidadãos que pensem, prioritariamente, ao realizar seu trabalho, no público e no seu direito de se informar corretamente. Não aceito a afirmação cínica (outra palavra que teve um percurso curioso, já que os cínicos, como Antístenes, discípulo de Sócrates, consideravam que a virtude, e não o prazer, constitui a verdadeira felicidade) de que “o jornalismo é uma profissão como qualquer outra”. Não é. Como não é a de médico, como não é a de professor. Todas as profissões têm, é claro, sua área de conhecimento, sua função social e sua ética próprias. Mas nós, professores de jornalismo, temos uma profissão que envolve dupla responsabilidade: educar pessoas, formar adultos conscientes de seu papel na sociedade, e preparar jornalistas para este século XXI. Ser professor já é duro. Em um curso universitário, as exigências são maiores. Em qualquer nível, porém, não considero professor alguém que não corrige os erros de linguagem porque “não é minha disciplina”; que não corrige os erros de comportamento, porque “não sou pai e muito menos babá”; enfim, para citar exemplos tão comuns em nossas salas de aula, não é professor aquele que deixa o aluno falar ao telefone celular em sala de aula, e muito menos o que deixa o celular ligado quando está dando aula e, pior, o atende. Sou antiga, não preciso dizer. Tão antiga que acredito ainda no papel de educador do professor. Não aceitaria ser apenas uma repassadora de conhecimento sistematizado. Somos professores universitários. E defendemos o nível universitário para o ensino do jornalismo. O jornalista e professor Álvaro Caldas, organizador do livro Deu no jornal – o jornalismo impresso na era da Internet, editado pelo Departamento de Comunicação da PUC, aborda esta questão da exigência do diploma de maneira bem clara: “A questão da obrigatoriedade do diploma de curso superior para o exercício profissional, que voltou a entrar em debate com uma liminar dada pela Justiça Federal de São Paulo suspendendo a sua vigência, é polêmica até mesmo dentro das redações. Mas o argumento aceito pela justiça na ação movida pelo Ministério Público Federal, de que a exigência de contratação de profissionais diplomados esteja cerceando a plena liberdade de expressão na mídia e o direito da sociedade à informação, é falso e distorce a realidade. A garantia de um jornalismo pluralista, independente e crítico, conquista dos regimes democráticos, só tem a ganhar com a formação universitária dos jornalistas. A exigência do diploma não constitui obstáculo para que outras pessoas possam expor seu conhecimento e opinião sobre problemas em que são especialistas, como mostram os artigos que diariamente estão na imprensa assinados por advogados, engenheiros, pisicólogos, médicos, sociólogos, historiadores, empresários, religiosos e sindicalistas. Nenhum deles jornalista.” A formação universitária, porém, está garantindo o fornecimento ao mercado de profissionais que fortaleçam este jornalismo pluralista, independente e crítico que se deseja, de que o país necessita mais do que nunca? Estamos em um momento crucial da história do Brasil. Pela primeira vez temos um Presidente da República, eleito em um pleito limpo e democrático, que não veio da classe dominante. Os problemas básicos, os problemas crônicos, os problemas recorrentes do país estão sendo discutidos. Houve uma tremenda onda de esperança varrendo todo o território nacional; e agora há o perigo da ressaca. Provavelmente vou ser advertida para a possibilidade de comer cru, como o foi o ministro da Educação Cristóvão Buarque, porque fico preocupada ao ver o FMI elogiar nossa política econômica, por termos um presidente do Banco Central que recebe uma aposentadoria absolutamente fantástica do Bank Boston, e por ser acusada, como aposentada depois de 38 anos de trabalho ininterrupto – e de correspondentes descontos para a Previdência – de ser a causa do enorme deficit nas contas do INSS. Mesmo assim, teimosamente, mantenho a esperança. Inclusive na existência de um jornalismo pluralista, independente e crítico. Mas como se exercerá, neste momento de tentativa de solução de velhos problemas, principalmente os da reforma agrária e da fome, tão ligados, o jornalismo? Como ficará a atividade do jornalista nesta era da Internet, isto é, neste mundo ligado em rede e onde a cada dia é criada uma novidade eletrônica? Onde os meios de comunicação e o governo estão tão preocupados com a exclusão digital? Não ter um computador já é, pelo menos para a imprensa do setor, pior do que não ter geladeira e muito pior do que não ter esgoto sanitário. (Aliás, há muito tempo não leio uma só linha sobre saneamento básico. Deve estar fora de moda.) Empresários brasileiros do setor, reunidos no Fórum de Comunicação Global, chegaram à conclusão de que o jornal do futuro chegará aos seus leitores via e-mail, televisão inteligente (um casamento do PC com a TV), pelo on-line e pelas diferentes formas de TV paga. Outra vez colando do Álvaro Caldas: “Segmentação e conteúdo são duas palavras-chave neste processo que conduz ao futuro. No projeto multimídia, a redação passa a assumir múltiplas funções de produção e o repórter tem a sua atividade segmentada, cabendo-lhe prover ao mesmo tempo os diferentes canais de informações operados pela empresa jornalística. À medida que os grupos se consolidam e adquirem tecnologia para operar como redes integradas de comunicação, o trabalho do repórter consistirá, cada vez mais, em abastecer de conteúdo as diversas mídias do mesmo sistema: jornal, TV, rádio, informação on-line, Internet. Já batizado de provedor de conteúdo, esse profissional, sucessor do repórter na redação, se deslocará para a rua equipado com celular, fone no ouvido, gravador e câmara. Desdobrando-se em três ou quatro, do local onde estiver receberá instruções e passará diretamente as informações, segundo o formato e as exigências de cada mídia.” A palavra repórter jogada na cesta do lixo – perdão, no ícone trash – me dá uma certa dor no coração. Mas, digamos que o provedor de conteúdo tenha a mesma função básica de recolher informações, checar dados, cruzar fontes, ouvir bem, observar melhor, e perseguir a verdade. Continua a ser o repórter, com novos instrumentos. Porque o bom jornalismo, seja em que época for exercido, obedece à velha e boa fórmula de apurar, redigir – ou embalar, como queria Lago Burnett – e divulgar. Os meios não são necessariamente a mensagem. Há algum tempo McLuhan vem sendo contestado nesta afirmação que parecia revolucionária, embora seu conceito de aldeia global esteja mais atual e valorizado que nunca. Aliás, já tenho idade bastante para ter visto muitas teorias “revolucionárias” serem desmoralizadas. O que é a mensagem é a linguagem utilizada; o discurso. Por isso me assusta a mudança de sentido em certas palavras. Uma ex-aluna, estagiando em um jornal, queixava-se a mim: “Eu estou achando horrível, pois até agora fiquei só na apuração”. Apuração é a parte mais nobre do trabalho jornalístico, mas conseguiram pegar a palavra – que tem uma origem semântica belíssima, de tornar puro – e transformar em rótulo da mais banal forma de reportagem, o rastreamento de hospitais, delegacias e festas. Sim, porque festas hoje são assunto prioritário, e quem organiza ou oferece as melhores, as mais extravagantes, vira logo personalidade digna de longas entrevistas e reportagens até mesmo naqueles veículos rotulados de sérios. Não creio que seja um acaso a desqualificação da palavra apuração. Já que afirmei ser a linguagem utilizada a mensagem – e não inventei isso, mas aprendi com Roland Barthes, que considerava a forma o veículo da ideologia – vamos falar um pouco dessa embalagem, da forma de transmitir a notícia ou o comentário. O instrumento básico para a transmissão de notícias, idéias, conhecimentos, é a língua vernácula. Embora o caderno de Idéias e Livros do Jornal do Brasil não saiba bem o que é língua vernácula. Em recente coluna, comentando a notícia de que os livros de aventuras de Harry Potter seriam traduzidos para o grego e o latim, a redatora “disparou”: “Os professores de línguas vernáculas estão adorando!” Há um projeto no Congresso que se destina a proteger a língua portuguesa que, pelo menos até agora, é a língua falada, escrita e usada nos documentos oficiais no Brasil. (Não em todos, é verdade. O contrato assinado pela Prefeitura do Rio de Janeiro com a Fundação Guggenheim, para estudo de viabilidade da construção de um museu da mesma griffe na cidade, é todo em inglês e sua última cláusula diz: “a divulgação deste contrato, em seu todo ou em qualquer de suas partes, só pode ser feito com expressa autorização do Citicorp”. Mas isso é outra história, ou estória.) Pois bem. Este projeto, sério, que evidentemente deve ser discutido e pode até ser combatido, vem sendo sistematicamente desmoralizado pelos cronistas e colunistas dos jornais brasileiros. E o argumento mais constantemente usado é o de que todas as línguas absorvem palavras de outras línguas e q
e são vivas, sempre em transformação. Isto é certo e o autor do projeto sabe. O que o projeto pretende não éproibir o que chamávamos de anglicismos e galicismos, como craque e balé, mas o contrasenso de uma cafeteria, uma lojinha que vende café brasileiro, pães de queijo e bolinhos de aipim, chamar-se Coffee ‘n Cake. (É verdade. Fica pertinho de minha casa.) Ou de em congressos de professores o intervalo ser chamado de coffee break. Ou de os jornais esquecerem que há regências próprias para os verbos e começar a usar a estrutura da língua inglesa (os preços agora sobem e as exposições inauguram). Ou de se chamar a nebulosa de Magalhães – em homenagem ao navegador português Fernão de Magalhães – nebulosa Magellan. De liquidação ter virado sale. Porque, reparem, não são coisas novas que não têm nome em português. As palavras que chegam com objetos, teorias ou processos estrangeiros, novos, a gente usa durante algum tempo na língua original enquanto vai inventando um jeito de absorver, de canibalizar, como fizemos com abat-jour, football e com goalkeeper e centerhalf, que, aliás, nem existe no futebol atual. Como sou antiga, estou preocupada com a língua escrita que, alguns garantem, vai também desaparecer, como o centro-médio no futebol. Vamos então ao meio do presente e do futuro (pelo casamento com o computador), a televisão, que, mostrando os fatos no momento em que acontecem, poderia até prescindir das palavras. Mas usa muito a palavra falada; e a escrita, como legenda, em entrevistas e letreiros em língua estrangeira. Há quem ache a visão do fato mais informativa que seu relato por escrito no jornal do dia seguinte. Às vezes é. Mas minha empolgação pelo impacto incrível que algumas imagens na televisão produzem se reduz um pouco quando lembro do atentado do 11 de Setembro. Incrível, terrível, eloqüente, a imagem do segundo avião atingindo a segunda torre, enquanto na gêmea a fumaça espessa já era bem visível. Eu, que não vejo tantas horas de TV quanto a maioria da população, tive ocasião de me horrorizar uma dezena de vezes com a cena. Mas, estranhamente, só vi umas chamas no Pentágono uma vez. Aquela incrível, terrível, eloqüente imagem do centro do poder militar americano atingido desapareceu. Não era repetida juntamente com a das torres. De fato, o poder da imagem é enorme. É pela televisão que a maioria absoluta do povo brasileiro se informa, uma vez que o índice de analfabetismo em nosso país sempre foi altíssimo e continua alto, se levarmos em conta o analfabetismo funcional. A imprensa chegou tarde aqui e nunca se desenvolveu muito. As tiragens de livros são ridículas e as de jornais e revistas bem pequenininhas, se levarmos em conta o tamanho da população. Como já disse Muniz Sodré, o Brasil passou diretamente da oralidade interpessoal, da conversa na farmácia e no café, para a oralidade dos meios eletrônicos, sem fazer o necessário estágio na informação escrita e na literatura. Grande parte dos programas televisivos têm títulos em inglês e com palavras em inglês. Nem falo dos de entretenimento. O mais importante canal por cabo com noticiário durante todo o dia, isto é, o canal cem por cento jornalístico, chama-se Globo News. Fica mais escandaloso o pouco caso com a língua portuguesa – e um dos aspectos da função pública do jornalismo é a fixação da boa linguagem utilizada pela maioria da população escolarizada, isto é, a linguagem que é a interseção entre o discurso erudito e o popular – quando se trata de programas que se pretendem educativos. Dois exemplos: em um programa sobre Leonardo da Vinci, o rei Francisco I da França, que abrigou o gênio italiano em sua velhice, era insistentemente chamado de Francis. Com forte acento americano. E em uma reportagem sobre o museu Ermitage, um dos mais importantes do mundo, ouvi o último czar da Rússia ser chamado várias vezes de Nícolas. Assim, com a tonicidade na primeira sílaba. Mais aí entra outro tema desafiador a considerar. O da informação que deveria ser adquirida na escola. E uso escola aqui para todos os graus de ensino. Nós herdamos alunos que saíram de escolas médias deficientes. Em quatro anos não se pode corrigir todos os problemas do sistema escolar. Mas o fato é que diplomamos alunos desinformados e, o que é mais grave, sem muita vontade de se informar. Uma ex-aluna da PUC, moça inteligente e dinâmica, que mobilizava os colegas para publicar livros de poesia e que dá aulas em um vestibular para carentes, perguntou-me outro dia: “Quem é Miguel Arraes? Tem alguma coisa a ver com o Guel Arraes?” Ficou espantadíssima quando eu disse que, além de ter sido prefeito de Recife e três vezes governador de Pernambuco, Miguel Arraes tinha sido preso e exilado em 1964, estava vivo, era deputado e presidente de um dos partidos que apoiara o presidente Lula no segundo turno. Ela havia feito o curso de jornalismo inteiro, e com brilho, sem ler jornal ou ver com alguma atenção noticiários de televisão. E era das melhores; pelo menos sabia quem são Ferreira Gullar e Siron Franco. Em artigo recente para o Observatório da Imprensa, Nilson Lage apresentou uma espécie de resumo do que deve ser um curso de preparação ou de aperfeiçoamento de jornalistas. Enfim, já respondeu quase todas as perguntas que estou fazendo aqui. “Trata-se de formar, em qualquer nível, profissionais polivalentes, que dominem as linguagens oral e gráfica, conheçam a história recente de sua cidade, de seu país e do mundo, saibam um tanto de Direito da Informação e tenham raciocínio ético que lhes permita estabelecer seus limites. Mais ainda isso não basta: serão necessários conhecimentos de informática, trânsito na área tecnológica e habilidade com números”. A habilidade com números, que realmente os jornalistas e seus professores têm descurado, me faz lembrar o fato de que Frei Caneca, o publicista do Tífis Pernambucano, assinou o manifesto da Confederação do Equador, em 1824, como “Lente de Geometria”. E deu aulas de matemática – e também de oratória – na prisão baiana em que esteve depois da Revolução Pernambucana de 1817, enquanto Antônio Carlos de Andrada, companheiro de revolta e de prisão, dava aulas de inglês. Bem, mas Frei Caneca não tinha que usar celulares, laptops (vamos pensar em um bom nome em português para eles?) e câmaras digitais – que muitos insistem em chamar câmeras, com e, quando câmara é uma velha e boa palavra portuguesa. O que fazer para ajudar o aluno de nossos cursos de jornalismo a, uma vez formado, atender as exigências da profissão hoje? A comissão que elaborava o Provão, coitadinho, tão rejeitado, mas de orientação tão correta, deu muitas “dicas” de como o ensino deveria enfrentar os desafios do jornalismo de hoje. Mas o próprio formato – ou, como preferem os adeptos da nova língua que circula no país, que é o inglês mal traduzido, o desenho – do curso está errado. Com toda a parafernália tecnológica com que contamos, com todo o desenvolvimento da psicologia e dos estudos da mente humana, a escola não mudou. É incrível que em um curso universitário se possa ainda ver dezenas de alunos sentadinhos em carteiras, em uma sala com um professor fazendo conferência diante de um quadro negro, como há duzentos anos. Parece que a grande mudança foi tornar o quadro branco e substituir giz por pilot. Há salas de aula com sensores que regulam a iluminação, projetores e aparelhos de multi-mídia (muitas vezes apenas para mostrar às visitas e inspetores do MEC ou para realizar trabalhos de encomenda para empresas, como vi em algumas faculdades que visitei), mas os alunos de jornalismo continuam a cursar em um semestre até oito disciplinas diferentes, sem qualquer entrosamento entre elas, em um processo que não pode levar a nenhum crescimento intelectual ou crítico. O maldito sistema de crédito, que seria perfeito se tivéssemos currículos individualizados, com professores orientadores para os alunos, não permite que se dê um curso de fato. Lembro sempre que curso é fluxo, movimento em uma direção, algo que no semestre seguinte não pode ser uma volta ou uma repetição, como acontece tantas vezes. Nas empresas mais atentas – não falo aqui das de comunicação social, com estruturas em geral rígidas e antiquadas – que de fato estão se adaptando ao terceiro milênio, já se delega poderes e decisões, já se faz auto-avaliação, já se descobriu a importância da equipe. Em muitos de nossos cursos universitários, trabalho em equipe significa aquela pesquisa desenvolvida por um ou dois alunos e assinada por quatro ou cinco… para ganhar nota! O sistema de notas ou de conceitos – o que muda pouco – é tremendamente arcaico. A separação entre teoria e prática, discutida há décadas em encontros como este, continua a vigorar. Os bons projetos como o Comunicar, da PUC, o jornal eletrônico, da UERJ, para citar duas universidades do Rio de Janeiro, cidade onde moro e trabalho, atingem pequeno número de alunos. A maioria pode se diplomar sem jamais ter feito um jornal, um programa de rádio, um noticiário de televisão, uma matéria de verdade para um portal da rede. E o que é pior, sem dominar a língua portuguesa e sem saber quem é Miguel Arraes, quem foi Louis Pasteur ou onde fica a Tanzânia. Como transformar em agentes do desenvolvimento social do país alunos que não acham importante ler, se informar, adquirir conhecimento próprio, elaborado e não decorado, porque “a gente acha tudo isso na Internet quando precisar saber”? Como poderão esses alunos, entrando no mercado, compreender e reforçar a vocação pública do jornalismo? Eles em geral querem reproduzir o que lêem e, mais ainda, vêem. Querem ser âncoras de programas antes de passar pela reportagem. Querem ser celebridades. Porque os jornalistas que se destacam hoje não são os grandes analistas, não são aqueles repórteres que revelam ângulos novos de velhos problemas ou a face verdadeira de uma determinada situação, mas os que brilham nas colunas sociais. Uma faculdade particular do Rio de Janeiro, tentando captar alunos para seu curso de jornalismo, fez uma grande campanha publicitária, com outdoors – olha aí outra palavrinha para a gente criar em português – que diziam: “Aqui você vai virar notícia”. Isto é um escândalo. Formar-se, trabalhar como jornalista, não é virar notícia. A não ser que os diretores desta escola pretendam que seus alunos sejam assassinados ou presos. É a inversão da função pública do jornalismo. E são “educadores” que já começam ensinando errado. Mas aí já teríamos que entrar no tema da ética, que foi muito bem tratado, no Fórum do ano passado, por Bernardo Kucinski. Não posso, porém, deixar de lembrar aqui uma opinião do filósofo Arthur Gianotti, citado pelos professores Miguel Pereira e Fernando Ferreira, do PUC do Rio, em um dos capítulos do já mencionado Deu no jornal: “Na observação de Arthur Gianotti o tema da ética ganhou relevância no Brasil pela observação da sua falta ou da quebra de suas regras nas últimas decadas”. Enfim, queria denunciar um certo deslumbramento com o novo. Não entendendo que as novidades não eliminam as boas coisas que já existem, mas a elas se somam, os fundamentalistas das novas tecnologias já decretaram o fim da escrita e até da palavra. De um professor da Escola de Comunicação da UFRJ ouvi uma vez, em palestra na Intercom: “Ninguém precisa mais ler; o importante é estar conectado”. Deveriam, ele e os outros membros da seita, copiar o exemplo do jornalista e escritor Marcos Santarrita que, em uma festa um tanto tediosa estava, em um canto afastado, entretido com seu palm top (como vamos passar a chamar esta simpática maquineta?). Percebendo que eu o observava, chamou-me e mostrou o que fazia: lia trechos de Thomas Hardy. “Este aparelhinho é formidável. Tomo notas nele para meus livros a qualquer hora e em qualquer lugar e ainda leio, de vez em quando, textos como este, que me dão prazer. Tenho uma dezena de clássicos armazenados aqui.” Viva Marcos Santarrita! Na revista Leitura, editada pela Imprensa Oficial de São Paulo, de março de 2003, encontrei um artigo do professor Flávio Aguiar que também me deu também um certo alívio. Já estava me sentindo um dinossauro, preocupada com palavras e literatura. Vejam o que ele diz, ao tratar da crítica literária que se faz hoje, principalmente na academia: “Vemos então estas observações um tanto quanto espantosas para um espírito crítico, que deveria antes de mais nada primar pela busca de um caráter objetivo e sistemático: ‘Não se pode mais falar em nação’, ou ‘o romance morreu, ou vai morrer’, ‘devemos deixar de ler Shakespeare e ler os grafites nos muros das grandes cidades’ etc. Isto pode ser bom para justificar pedidos de verbas suplementares em tempos em que tudo se transforma em espetáculo, inclusive a vida acadêmica, que a cada ano parece ter que partejar um novo cânone revolucionário. Mas não é bom para consolidar o saber como conquista individual e patrimônio coletivo, que é o objetivo da crítica.” O desejo do saber, como conquista individual e patrimônio coletivo, é também o que deveríamos incutir em nossos alunos, futuros jornalistas. Não o saber descartável, aquele dado que eu obtenho em um banco da Internet para completar, para confirmar o que recolhi de outras fontes, mas o saber interiorizado, assimilado. O jornalismo de declarações é resultado do trabalho acadêmico de citações. As declarações não podem ser simplesmente repassadas, mas absorvidas, confrontadas, interpretadas à luz de informações obtidas previamente. A primeira resposta ao desafio de preparar jornalistas para a tarefa que se impõe hoje no Brasil é o cuidado com as palavras, com a língua, com a exatidão. Outro dia ouvi de um bom jornalista, Milton Coelho da Graça, a afirmação, na TV Educativa, de que hoje se lê muito, mais do que há algum tempo, na Internet. Ora, para você entender, curtir mesmo, o Diálogo de Crátilo ou da Exatidão das Palavras, registrado por Platão, é preciso tê-lo no papel, para reler trechos, anotar. Acho difícil, confesso, e pode ser atraso meu, estudar essas coisas na tela de um computador, baixando um texto cuja correção não é de responsabilidade de ninguém. Não preciso lembrar aqui a quantidade de textos apócrifos que correm na rede. E há ainda a absurda afirmação, muito repetida, de que não é preciso escrever corretamente quando se manda uma mensagem eletrônica, “porque não se pode perder tempo”. Claro que, para saber se Guga venceu ou não o jogo a que não pude assistir, acesso – que palavrinha esquisita; tão for a da estrutura de nossa língua – ou melhor, dirijo-me ao sítio eletrônico de um jornal ou do Banco do Brasil. Enfim, chega de dizer coisas que talvez sejam óbvias para esta platéia ilustrada. Mas é que me deram a oportunidade e eu não posso perder nem uma nesta briga pela manutenção do português, do bom português do Brasil. E aos fundamentalistas da era da imagem respondo com Millor Fernandes: “É, eu sei que uma imagem vale mil palavras. Mas, diga isso sem palavras!” Ana Arruda Callado